sábado, 4 de junho de 2011

A pequena Anita


Eram cinco horas da manhã quando Anita saiu de casa e iniciou sua exaustiva caminhada. Ela precisava sempre sair naquele horário, pois morava muito longe da cidade, onde existia a única escola que aceitavam crianças negras em suas aulas.
E apesar do grande esforço que precisava fazer todos os dias, Anita sempre chegava à escola muito feliz e agradecida por conseguir estar ali junto com as outras crianças aprendendo a ler e a escrever, o que era algo inédito em sua grande e pobre família.
Seus pais eram analfabetos, assim como seus avós e bisavós. Não saber ler e escrever era algo tão natural entre eles que o fato de alguém lutar e se esforçar para ser alfabetizado era quase uma afronta aos seus costumes e tradição.
E era também contra isso que a pequena Anita precisava lutar. Não bastava ter de caminhar muito, chegar à escola cansada e com fome todos os dias e ainda enfrentar olhares de desprezo e indignação da maioria de seus colegas e professores por ela insistir, sendo uma menina negra, em estar ali na melhor escola municipal daquela cidade.
Anita ainda ao voltar para casa precisava ouvir de seus irmãos mais velhos e de seus pais que sua insistência em querer aprender um pouco mais não adiantava em nada, pois no final, mesmo sabendo ler e escrever, mesmo se tornando até uma "doutora", os brancos continuariam a tratá-la como tratavam seus avós e bisavós.
De estatura baixa e sendo bastante magra, apesar de já possuir quatorze anos de idade, Anita tinha a aparência de uma menina de dez anos de idade, possuía olhos castanhos esverdeados, que constratavam com sua pele negra e seus cabelos pretos e cacheados. O seu rosto possuía feições delicadas e ao mesmo tempo havia nela um ar forte e nobre, que segundo sua mãe devia-se a herança de sua tataravó, que era uma princesa africana que fôra tirada de seu país e feita escrava aqui no Brasil pelos desalmados portugueses.
Dona Maria atribuía a isso também o motivo de Anita ser tão teimosa e rebelde e tão diferente deles todos que a tempos haviam se conformado com seus destinos.
Talvez fosse ela, sua pequena Anita, uma antiga princesa africana que agora retornara para rebelar-se contra tudo que haviam feito ao seu povo, para através dos estudos retomar o lugar de respeito naquela sociedade cruel e preconceituosa.
Isto era o que secretamente pensava, mesmo que no dia-a-dia continuasse opondo-se ao interesse de sua filha em estudar e aprender mais.
Anita apesar de muito jovem já se acostumara àquela oposição e a todos os obstáculos que tinha de enfrentar para alcançar seus objetivos e realizar o seu grande sonho, que era tornar-se uma famosa escritora.
Uma escritora que questionaria e ao mesmo tempo incentivaria a todos: pobres, negros, brancos ou ricos a tornarem-se melhores, através dos estudos e da literatura.
Mas infelizmente, devido a sua pouca idade Anita não estava preparada para enfrentar as armações e maldades do ser humano e num certo dia, em sua escola, já ao final da aula, alguns de seus colegas, que nunca haviam se conformado com o fato de haver uma negrinha em sua classe, armaram uma grande cena, acusando-a de roubar um pertence muito valioso da professora, que imediatamente pôs-se contra ela, acusando-a e ofendendo-a cruelmente, sem se quer supôr que tudo poderia ser um grande engano ou uma armação.
Anita desesperada pedira para que suas coisas fossem revistadas e assim, eles comprovassem que o tal objeto não estava com ela, mas a professora nem se dera a esse trabalho e a encaminhara ao diretor, para que fosse expulsa da escola como sendo uma ladra.
O diretor aceitou prontamente a acusação e assim, com a maior facilidade expulsou Anita, quase enxotando-a do lugar, fazendo questão ainda de informar que passaria o ocorrido a todas as outras escolas para que nem pensassem em aceitá-la em suas aulas.
Anita compreendia perfeitamente aquilo tudo, e com sua dignidade inabalada saiu daquela escola de cabeça erguida e firme em seu propósito de não deixar de estudar e aprender.
Era um grande esforço para ela conter as lágrimas de tristeza e indignação, mas respirou fundo e seguiu sua longa caminhada de volta a sua casa, agradecendo a Deus pelo fato de eles não terem sido cruéis a ponto de quererem castigá-la fisicamente por algo que todos sabiam que não fizera, como era o costume nos tempos de seus avós e bisavós.
Como não pôde mais ir à escola, Anita começou a trabalhar de doméstica na casa de uma família muito rica da cidade, como fazia sua mãe e fizeram sua avó e tias e ainda faziam suas irmãs mais velhas.
- Era esse o seu destino. - dizia sua mãe, com um olhar triste de alguém que no fundo sonhara com outra vida para sua sonhadora filha.
- Não, mãe. Este é o destino que querem nos dar, mas não é esse que vou ter. - pensava para sí mesma, enquanto saía para o trabalho.
Trabalho esse que poderia ser uma simples e triste rotina, mas para Anita, que tinha sede de aprender, tornara-se tudo que ela precisava para realizar o seu grande sonho.
Como em todas as casas ricas da cidade, onde ela trabalhava havia uma imensa biblioteca, cheia de obras literárias famosas. Um tesouro muito precioso para alguém como Anita, que deu um jeito de aproveitar todo o conhecimento existente nelas.
Ela chegava sempre um pouco antes do horário para assim ficar lendo e aprendendo com aqueles magníficos escritores que através de seus textos a transportavam para um outro mundo, um mundo onde ela poderia ser o que quizesse independente de sua raça ou condição financeira.
Apesar de a cada dia Anita sentir-se mais apaixonada pela leitura daqueles livros, nunca atreverasse a levá-los para sua casa. Sempre lia-os ali enquanto arrumava e limpava o local.
Ninguém suspeitava que por trás daquela jovem menina havia uma buscadora, com sede de cultura e erudição.
Até que um dia, seu jovem patrão encontrou-a lendo tranquilamente um romance clássico da literatura inglesa, chamado: Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, traduzido para o português.
Ambos ficaram muito surpresos. Anita temendo o que ele pensaria do fato de ela estar lendo um livro seu, sem sua permissão e Otávio por nunca imaginar ver sua empregada lendo um livro, tão pouco uma obra clássica como aquela.
A menina estava pronta para desculpar-se por tudo, quando foi impedida por ele que preferiu saber mais sobre sua opinião sobre cada livro que lera escondido até aquele momento.
Anita ainda muito nervosa com o fato de ter sido apanhada em flagrante mal conseguia falar, mas algo dentro dela fez com que aos poucos fosse ficando mais calma e assim, conseguisse dar sua sincera e simples opinião sobre tudo que havia lido.
Otávio ficara encantado, surpreso e muito emocionado ao encontrar em Anita algo que estava buscando durante anos. Ela era a primeira pessoa que sentira vontade de conversar sobre aqueles livros e sobre toda a cultura existente neles e em todas as grandes obras clássicas.
E daquele dia em diante, sempre que podiam eles encontravam-se rapidamente para comentar sobre algo que estavam lendo e o quanto uma história ou outra mexia com seus sentimentos e os fazia pensar sobre seus costumes e a vida em geral.
Anita continuava chegando mais cedo e aproveitando aqueles minutos antes de seu horário para ler algo novo, pois ambos não haviam contado a ninguém sobre o dia em que Otávio a surpreendera lendo, pois tinham certeza que ninguém entenderia suas razões e, principalmente sua sensibilidade.
Quando completara um ano daquele primeiro encontro surpresa, Otávio presentara sua jovem e buscadora amiga, com o livro de Jane Austen, Orgulho e Preconceito, para que a partir dali ela começasse sua própria biblioteca. Anita não pudera ficar mais feliz e emocionada. Aquele era o primeiro presente que recebera em sua vida e com certeza, o melhor e do qual jamais esqueceria.
No ano seguinte, naquela mesma data, Anita entregara a Otávio algo muito especial, tratava-se de um romance que ela mesmo escrevera e que infelizmente sabia que mesmo que fosse uma grande obra, jamais seria publicado devido a ser ela, a autora.
Otávio mesmo sem ler o livro, intimamente sabia que deveria tratar-se de uma grande obra, algo que com certeza, mexeria com os sentimentos e pensamentos de muitas pessoas e alguns dias depois, após ler e se emocionar profundamente com o que Anita escrevera, propôs a ela um acordo, que seria um grande segredo, o qual talvez fosse revelado no dia em que a sociedade em que viviam mudasse completamente e aprendesse a enxergar além das aparências.
Anita aceitou prontamente e não demorou muito tempo para a obra que escrevera, tornassesse a mais lida e comentada daquela época, sendo inclusive recomendada para ser utilizada em sala de aula.
E assim, após dez anos se passsarem, Anita retornou a escola da qual havia sido expulsa, porém desta vez como convidada especial para comentar sobre sua famosa obra literária, que recentemente havia sido premiada mundialmente e feito o devido reconhecimento a sua verdeira autora.
Anita reconheceu imediatamente o antigo diretor e a professora que sem piedade a haviam expulsado dali. Ambos mal conseguiam olhar em sua direção, não sabia ela se era por vergonha ou indignação.
Mas naquele momento isto pouco importava, pois o mais importante era que ela estava ali diante de várias crianças negras que agora já podiam estudar em todas as escolas da cidade e que viam nela, um grande exemplo de vontade, perseverança e dignidade.
E então, com um grande sorriso e o mesmo olhar forte e nobre, apenas disse:
"O preconceito e a injustiça somente são fortes se nós desistimos de nossos sonhos e perdemos a confiança em nós mesmos".